Girafas não existem
ou pelo menos não deviam existir se a realidade fosse minimamente séria.
Mentir é muito gostoso. É de graça e, no contexto adequado, inofensivo. Deturpar a realidade a fim de obter sucesso na realização de algo é muito satisfatório. Sabe quem concorda comigo? Crianças. Crianças reconhecem o quanto é gostoso mentir o tempo todo. Crianças mentem e não se importam com as consequências de suas mentiras. O mais legal é que as crianças entendem naturalmente que a realidade não firmou nenhum compromisso com fazer sentido e por isso suas mentiras desrespeitam leis, da termodinâmica à etiqueta passando pela regra de ouro da economia pública.
Existencialismo é um tema muito interessante sobre o qual muita gente melhor do que eu já se debruçou e produziu uma infinidade de “conteúdo” (palavra amaldiçoada, qual o contrário de neologismo?) Hoje em dia o absurdismo anda muito em voga — no 174 que eu pego pra ir pro trabalho em dia de chuva só se fala nisso “mas eu tenho que imaginar que ele tá feliz, mesmo?” — e, tirando as causas provenientes do capitalismo tardio, faz muito sentido, afinal
mas voltando ao tópico, crianças são absurdas, tem até um enlatado americano sobre isso

inclusive se esse programa fosse francês as crianças estariam fumando e diriam coisas como “Aujourd'hui, maman est morte. Ou peut-être hier, je ne sais pas.” Enfim, crianças mentem da maneira mais pura possível, sem se preocupar que alguém possa acreditar, afinal, que tipo de pessoa horrível vai expôr uma criança?!
Algumas pessoas apontam pra existência do ornitorrinco como a prova de que estamos em uma simulação. De que deus não existe. De que o conjunto de todos os conjuntos não pertence a si mesmo: “ele tem bico, bota ovo, é mamífero, e ainda por cima venenoso?!” Mas eu não vejo problema nisso. Problema eu vejo no homem brincar de deus e se aventurar a criar vida como nas igualmente bem-sucedidas produções de audiovisual Jurassic Park e O clone. Problema eu vejo numa girafa. Sim, chegamos ao ponto fulcral dessa diatribe. Eu também, leitor, padeço desse mal irremediável de procurar padrões escondidos e tentar, futilmente, fazer sentido da realidade a minha volta
e por essa razão girafas me desafiam. Girafas fazem perfeito sentido, se forem fruto da descrição de uma criança sobre um animal mítico que elas viram/sonharam/imaginaram/mentiram pra te impressionar. Segue diálogo fictício porém perfeitamente plausível
- certa feita avistei um animal fantástico
- é mesmo? quais eram suas características particulares?
- se assemelhava a um cavalo, entretanto sua pelagem era distinta
- disposta em forma de listras? tal qual uma zebra?
- não! ora, sei por fonte segura como se parece uma zebra e que sua pelagem é binária, disposta em listras. este animal era diferente, sua pelagem era disposta em… em… em manchas!
- em manchas? tal qual as de um leopardo?
- isso mesmo! um cavalo amarelo com bolotas pretas à moda de um leopardo. e era enorme, com um pescoço avantajado
- que interessante! quão enorme?
- aproximadamente 18 pés ou seis jardas. aproximadamente metade em seu pescoço que conta com um Yao Ming de comprimento
- deveras distinto este anim-
- E ANTENAS! TEM ANTENAS NA CABEÇA. E SE ALIMENTA DE FOLHAS. E BRIGA POR TERRITÓRIO À BASE DE GOLPES COM SEU CRÂNIO FAZENDO USO DO BALANÇO DO AVANTAJADO PESCOÇO PARA PRODUZIR ELEVADO TORQUE, AUMENTANDO O IMPACTO NA COLISÃO INELÁSTICA
Em resumo, girafas não existem. Ou não deveriam existir. Por algum motivo todo mundo simplesmente aceitou que elas “existem” e “são reais” e “fazem parte da fauna” e não são um animal saído de um reino mágico fictício como, sei lá, a Nova Zelândia. Mas tudo bem, Camus tá em alta, Kafka tá voltando com tudo e o chato sou eu, o maluco sou eu, quem tem que botar a camisa de volta e falar baixo por favor porque isso aqui é um Bob’s sou eu.
~~cantinho da sugestão~~
Eu sugiro que você pare. Brincadeira, pode continuar. Eu gosto muito dessa cantora chamada Mitski, em especial dessa canção:
P.S.: eu comprei um teclado novo só pra escrever essa newsletter (mentira):
Sobre o trecho em francês (que eu tive que botar no tradutor) e o tema do texto em geral, minha amiga me contou que uma criança conhecida dela, depois de um coleguinha do futebol futebol faltar o treinom uma vez, inventou que foi porque a mãe dele morreu. A história passou por uns 5 adultos, tipo telefone sem fio, até alguém resolver finalmente falar com o pai do menino que faltou e descobrir que ninguém tinha morrido!
Então tá confirmada tua hipótese kkkkk